Negociações coercitivas devem ficar no passado para evitar revolta muçulmana
![](https://static.wixstatic.com/media/cc0421_9999bfad3b8e4386bd65d05073d14f46~mv2.jpg/v1/fill/w_699,h_420,al_c,q_80,enc_auto/cc0421_9999bfad3b8e4386bd65d05073d14f46~mv2.jpg)
RIO — Depois de anos numa longa crise sem horizonte de desfecho, o conflito entre Israel e palestinos pode vislumbrar uma oportunidade de solução diplomática justamente quando está diante de um dos seus maiores desafios. Segundo o francês Yann Duzert, professor de Negociação e Resolução de Conflitos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), após o reconhecimento de Jerusalém como capital israelense pelos EUA, este pode ser o momento para que novas negociações internacionais promovam concessões israelenses à formação de um Estado palestino.
Ao GLOBO, ele explicou que as conversas de paz devem deixar no passado suas tendências coercitivas, em que pode apenas haver um vencedor, para adotar modelos pedagógicos de compreensão mútua, evitando o prolongamento de frustrações históricas em novas ondas de revolta internacional na comunidade muçulmana.
Com a sua decisão, o presidente dos EUA, Donald Trump, abandona de fato as negociações por uma solução de paz entre Israel e palestinos?
Ele está quebrando um panorama de hemostasia e status quo. É uma situação de impasse e, por conta deste momento de crise, sua decisão gera desequilíbrio e quebra um paradigma numa negociação travada. Cada crise traz uma oportunidade. Vamos ver se este momento pode trazer uma nova solução.
O premier de Israel, Benjamin Netanyahu, diz que o reconhecimento de Jerusalém como capital abre o caminho à paz. É de fato possível que novas conversas sejam bem-sucedidas?
Existem vários cenários possíveis. Um deles é considerar que, assim como tivemos na Alemanha, outrora dividida em porções oriental e ocidental, talvez um dia Jerusalém represente um território no qual existam duas demografias. Jerusalém poderia ser a capital de Israel, ao mesmo tempo em que existisse um Estado palestino cuja capital seria a parte oriental da cidade, Ramallah ou algum outro local. A decisão de Trump não é incompatível com a solução de dois Estados e, com essa concepção forçada por ele, poderia haver concessões recíprocas para propor o Estado palestino. A diplomacia facilita, e esta crise de Jerusalém pode ser vista como risco, mas também é uma oportunidade para que haja concessões israelenses à solução de dois Estados. É uma hipótese.
O que é mais urgente neste momento para as negociações internacionais?
Primeiro, é necessário pensar em concessões, e não em opressões. Deve-se reconhecer a população palestina e enxergar isso como realidade também, da mesma forma que Israel vê Jerusalém como sua capital. Tudo passa pelo reconhecimento das identidades. E não se devem forçar as negociações, como fazem Trump, Netanyahu e o presidente russo, Vladimir Putin. Este jogo de xadrez, no qual um perde e outro ganha, é o que se chama de velha escola das negociações. Mas faz-se preciso um modelo de ganha-ganha, com mentalidade bilateral e mais amigável, que se chama de newgotiation ("neogociação", em português). Trata-se de mais multilateralismo num modelo explicativo, e não coercitivo. Senão, vejo risco de termos guerra para sempre, com o domínio da resistência violenta em todas as suas formas e polarização dos dois lados do Oriente Médio.
Quais países deverão tomar a frente destas conversas agora?
As Nações Unidas trazem garantias para a construção de regras internacionais, apesar da sua lentidão e burocracia, e por isso, o estado de direito poderia ficar a seu cargo. E a mediação poderia ser feita pela Europa. O presidente da França, Emmanuel Macron, já se reuniu hoje (ontem) com Netanyahu e mantém bons laços com Trump. A chanceler federal alemã, Angela Merkel, também poderia se engajar num diálogo construtivo.
E a Rússia? Deverá ter atuação maior nesta questão?
A busca de Israel, Arábia Saudita e Estados Unidos é romper o acordo nuclear com o Irã e demonizar o seu regime. A Rússia tem um sistema de proteção militar para o país e quer fazer dele uma zona de influência, enquanto tira o seu Exército da Síria e quer manter sua influência lá também. Com a divisão no Oriente Médio, a instrumentalização deste poder acontece pela venda de armas, e isso também conforta o patriotismo russo. Putin vê o seu prestígio na cena internacional, o que lhe permite manter-se no poder num país que sofre com a gangrena da corrupção. Por sua vez, Trump vê esse conflito como a fonte para fortalecer a sua base entre os evangélicos e sionistas, agradando também ao Congresso. Ou seja, há interesse pelas negociações de paz nas bases de Rússia, EUA e Europa, que tenta ser um equilíbrio de poder entre Moscou e Washington.
Qual a viabilidade de estas negociações resultarem numa solução de dois Estados?
Existe hoje importante influência do Hamas, que impõe um desafio com o apoio do Catar. E a Arábia Saudita teme a influência deste país, assim como a do Irã, sobre um Estado palestino. Os EUA também não querem isso, porque julgam que seja perigoso. Seria um risco para a região, que já tem o Hezbollah do Líbano sob a influência xiita do Irã. Uma autoridade da Palestina poderia, então, existir, mas com cautelas: autonomia financeira e influência do Irã reduzidas, porque esta é uma ameaça de destruição a Israel.
O Hamas convocou uma Terceira Intifada e, apesar dos confrontos, este fenômeno não começou de verdade por enquanto. O que há de diferente hoje, em comparação aos tempos das outras duas ondas de violência?
Imagino que as populações palestinas estejam cansadas e empobrecidas, enquanto talvez haja maior controle policial e militar. Não sabemos ainda como seria uma nova intifada, que criaria uma forma de Primavera Árabe de novo. Mas não é bom deixar populações na miséria e sem governo, como estão os palestinos. Sentimentos de empatia e rebelião podem ganhar outros países: a comunidade muçulmana ultrapassa fronteiras, e a sua revolta pode se dissiminar através do seu 1,5 bilhão de membros das formas mais diversas, incluindo antissemitismo, ativismo e radicalização. Nada disso vai ao favor da tolerância, da moderação e da aceitação da diferença. As negociações duras vão no mesmo sentido da colonização e da repressão, o que gera reação. Os movimentos que tentam não aceitar um território nem futuros prósperos geram fobia e raiva. Isso nunca ajuda à construção da paz. Leia mais: O Globo